* Por Carlos Lima Costa
Treze anos após sua morte, Dercy Gonçalves (1907-2008), uma das atrizes mais irreverentes que o Brasil já conheceu, tem sua história revisitada no livro de memórias Minha Tia Dercy, escrito por sua sobrinha neta Lucy Freitas, que trabalhou mais de três décadas com ela como atriz e produtora. Além de relembrar passagens conhecidas de sua trajetória, a obra que já está em pré-venda desde o dia 28 pelo Catarse e que vai estar disponível nas livrarias até o final de novembro, traz detalhes pitorescos de sua trajetória de vida, como uma época em que Dercy fez parte de um quarteto de mães de santo, chamado As Quatro Cabeças, e recebia um caboclo chamado Paracatu.
“Eu morava com ela essa época. Minha tia era muito engraçada. Ela ia no macumbeiro, fazia despacho quando mandavam e foi um cara lá todo paramentado, um médium que recebia Nero, o Imperador de Roma. E começou a ir muita gente, no apartamento dela. Minha tia era uma estrela e não gostava de ser coadjuvante em espetáculo de ninguém. Então, deu um pé na bunda do Nero e tratou de montar seu próprio palco no tríplex em que morava. Com ela, estavam minha tia Lucy, irmã do meu pai, Nilza, uma costureira de teatro, que era macumbeira e trabalhava em um centro, e a amiga Nela Silva. Elas começaram a fazer sessão, todas às segundas, reunindo mais de 20 pessoas. Por ali passaram nomes importantes como Márcia Kubitschek (1943-2000), Lourdes Mayer (1922-1998) e Oscarito (1906-1970)”, revela.
Foi justamente uma história envolvendo o comediante Oscarito, astro de filmes como Aviso Aos Navegantes e Nem Sansão Nem Dalila, que fez com que Dercy cancelasse essas sessões. “Ele estava doente e ia lá. Aí o tal do caboclo Paracatu, que minha tia manifestava, mandou a Margot Louro (1916-2011), mulher do Oscarito, fazer um despacho para ele no cemitério. E minha tia foi junto. Elas deixaram o alguidar em cima de um túmulo para arrumar o lugar que iam colocar a oferenda, acenderam as velas do despacho e quando foram pegar o alguidar para oferecer para o santo, ele tinha sumido. Minha tia ficou apavorada, porque ela teve a intuição se dizendo manifestada. Mas tinha consciência de que não recebia ninguém e ficou com medo daquilo pelo que aconteceu no cemitério. Assim, ela acabou com as sessões. Tempos depois, tia Dercy me confessou que pelo menos da parte dela era encenação”, explica Lucy, que trabalhou com a atriz em novelas como Cavalo Amarelo, da Band, e Deus Nos Acuda, na Globo, das quais Dercy participou.
Sobre esse lado místico, no livro, Lucy revela ainda que Dercy dizia que não existia vida após a morte. “Mas um dia, ela me falou assim: ‘Quando eu morrer não quero essa gente se manifestando e me recebendo, não quero ninguém dizendo que sou eu. Vou te entregar uma senha. Se a pessoa não falar isso, não sou eu.’ Ainda brinquei que ela estava se contradizendo. Mas, de repente, queria era provar que isso não é verdade, que realmente não tem vida depois. Após a morte dela, recebi tipo cartas psicografadas, mas nunca teve a tal senha”, conta.
A ideia de escrever o livro surgiu antes mesmo da morte de Dercy. Ela chegou a prestar consultoria para Maria Adelaide Amaral, quando esta escreveu a biografia Dercy De Cabo a Rabo, em 1994. E foi a própria autora que sugeriu que ela lançasse uma obra, pois conhecia inúmeras histórias. Na época, Lucy estava brigada com a tia, e fez as pazes justamente na noite de autógrafos.
“Sempre fui muito interessada na minha tia, ela era meu ídolo. Minha avó Bita, a irmã mais velha que a criou, vivia na minha casa. Assim, tia Dercy almoçava lá todo final de semana. Teve uma época em que vovó foi morar com ela, e como estava doente, eu fui junto. Então, quando li a biografia, vi que faltavam muitas histórias, como a primeira vez que fez uma cena em público, aos cinco anos de idade”, ressalta Lucy que escreveu o livro entre 2012 e 2015. O projeto ficou parado. Em 2018, com a morte da mãe, entrou em depressão. Ano passado, Lucy ainda sofreu outro baque, a perda do marido, Albano Freitas. “Fui ao fundo do poço”, diz.
Aos 70 anos, Lucy cresceu em uma sociedade machista, na qual a mulher não tinha voz. Mesmo assim, o jeito irreverente da tia, que se expressava com muitos palavrões nunca lhe causou problemas. Um episódio triste aconteceu anos depois com a filha de Lucy, Taynã Fontes, em 1990, na época com cinco anos de idade, em Santa Maria Madalena, cidade natal de Dercy. “Uma menina chegou nela e disse: ‘Você é sobrinha da Dercy? Não gosto dela, minha família não gosta dela.’ E lhe deu um tapa na cara”, recorda Lucy, que morou por lá entre 1990 e 1993, quando foi convidada pelo prefeito a montar um curso de teatro. Era a época que a tia mandou construir seu famoso mausoléu.
A imagem pública de Dercy era a de uma mulher irreverente. Mas dentro de casa, conforme explica Lucy, ela era bem convencional em certas questões. “Minha tia era mesmo um paradoxo. Da mesma forma que era vanguardista em determinados aspectos, era tradicional em outros. Por exemplo, ela enchia a boca para falar: ‘minha filha casou virgem’. Ela dava muito valor a isso, tinha fixação por casamento e deu o vestido de noiva da família inteira. Começou com uma tia minha paterna, depois foi a filha dela. E eu fui a terceira, ela me levou para fazer o vestido de noiva, em São Paulo. Depois, quando soube que eu não casei virgem, ela ficou falando: ‘Quer dizer que eu fiz papel de palhaça mandando fazer um vestido branco.’ Falei que isso não existia mais. Me casei em 1978, mas vivia com meu marido desde 1970. Minha tia sabia, mas tinha aquela ‘vontade de acreditar’ que por eu estar me casando de noiva eu ainda era virgem”, diverte-se Lucy. E prossegue: “Fui a primeira da família a se graduar na faculdade, ela tinha um orgulho disso. Dizia: ‘Lucyzinha é historiadora.’ Ela tinha essa questão da unidade familiar, enchia a boca para falar da família”, recorda.
Mesmo com seu jeito, Dercy recebia carinho até das pessoas mais tradicionais. “Ela foi muito abraçada pelo público. Acho que todas essas família caretíssimas iam no teatro dela, porque minha tia não era indecente, nunca se viu na mídia nenhuma situação de sacanagem, orgia da vida dela. Ela dizia palavrão. E da forma que ela dizia, as pessoas gostavam. E palavrão na minha casa sempre foi vírgula, não só dela. Minha avó, a irmã mais velha dela, falavam muito. Não era nada agressivo. Mas a gente não podia falar enquanto éramos crianças. A mágoa que minha tia tinha era com a mídia e com a própria classe de não reconhecê-la como a atriz que ela era, criadora e que criou escola. O próprio Paulo Gustavo (1978-2021), o jeitão dele, tinha muito de Dercy”, afirma.
Como morou bastante tempo com a tia, Lucy presenciou muitas histórias. “Ela teve vários namorados. Conto sobre um famoso, sem revelar o nome. Um dia, teve uma briga e ela o colocou para fora de casa de pijama, descalço e jogou a roupa toda dele pela janela. Minha tia tinha 57 anos, ele devia ter uns 40. Embora fosse bem mais novo, ele morreu muito antes dela” diz.
Durante os anos de convivência, Lucy percebeu que a tia não gostava de ficar sozinha. Na fase final da vida de Dercy, Lucy já não estava morando no Rio de Janeiro. Ela que também é designer de joias, foi viver em Nova Friburgo onde montou um ateliê. Mas estava sempre vindo ao Rio, porque fornecia suas peças para as novelas da Globo. Nessas ocasiões, ficava na casa de Dercy entre domingo e quarta-feira.
“Era um sábado quando minha mãe me ligou para avisar que minha tia tinha sido internada, mas não me apavorei, pensei que logo ela já fosse estar em casa novamente. Mas não queria deixá-la no CTI do hospital onde estava, porque eu era a única pessoa que sabia que minha tia tinha a síndrome do pânico. Ela não dormia sozinha no quarto. Por exemplo, fui contratada pela Bandeirantes para fazer novela em São Paulo. Como eu era do Rio, eu tinha direito a um quarto, mas ela sempre quis que eu ficasse no mesmo quarto. Meu marido, ia toda sexta-feira, mas não tínhamos privacidade, porque ele tinha que ficar nesse quarto, todo mundo junto. Assim, a gente transava no banheiro. Fui percebendo que isso era uma síndrome do pânico”, avalia Lucy.
Desde quando era criança, Lucy percebia essa detalhe no comportamento da tia. “Por exemplo, estava vivendo com algum namorado e quando brigavam, geralmente de noite, ela batia na porta da casa dos meus pais, dizia que estava com medo do namorado fazer uma cilada e pedia que um deles fosse dormir na casa dela, porque ela não ficava sozinha. Quando soube que estava no CTI lembrei de quando ela teve câncer, que acordou em um CTI e o quebrou todo, arrancou aqueles fios, porque teve uma crise de pânico. Eu lembrei que tinham duas casas de saúde no Rio, que o CTI era no próprio quarto. Aí comecei a ligar para a minha prima para transferi-la, pensando que ela ia ter uma crise de pânico”, lembra. E acrescenta: “Minha tia não morreu da pneumonia e sim de parada cardíaca por causa de uma crise de pânico”, acredita.
No livro, Lucy conta também que a tia não podia ver ninguém em situação difícil de saúde, nem de grana ou de injustiça, que ela queria ajudar. Outra peculiaridade abordada era o fato de não gostar de ganhar presentes. “Minha tia dizia que quando queria comprar algo e não podia, ela ficava muito frustrada. Quando já tinha condições de comprar, ela dizia que não gostava de ganhar presente, porque isso lhe tirava o prazer de comprar as coisas. O Faustão sabia disso, então não dava presente para ela, ele dava dinheiro. Aniversário dela, ele mandava dez mil”, conta Lucy.
Um dos grandes prazeres de Dercy era jogar. “Eu lhe falava que qualquer hora ela ia ser presa, porque ia ela e minha mãe (Zuleica Fontes) para os bingos clandestinos. Ela nunca parou de ir ao bingo. Chegou até a falar com o Lula para abrir os bingos”, finaliza.
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