Carrie, a estranha: Chloë Grace Moretz que perdoe, mas feiúra é fundamental!


Amnésia! Esquemática, a nova adaptação do livro de Stephen King para o cinema esquece a beleza de ser estranha!

Existem filmes que jamais deveriam ser refeitos. Essa máxima, geralmente proferida por cinéfilos puristas, é às vezes um exagero, mas perfeitamente aplicável à nova versão de “Carrie, a estranha” (Carrie, Sony Pictures, 2013), que estreou por aqui nesta última sexta feira, 6/12. De fato, algumas obras são tão definitivas, na visão de alguns cineastas, que é absolutamente dispensável qualquer tentativa de recriá-las, a menos que a nova fornada acrescente alguma tinta diferente à história, justificando seu remake. Por que refilmar “O Mágico de Oz” (de Victor Fleming, MGM, 1939) “… E o Vento Levou”(de Victor Fleming, MGM, 1939) “O Poderoso Chefão”(Francis Ford Coppola, Paramount, 1972), “A Malvada” (de Joseph L. Malkiewicz, Fox,1950) ou “Guerra nas Estrelas”(de George Lucas, Fox, 1977), todos completos por si só? É possível contar algo novo, sob um diferente ponto de vista, além daquilo que já foi feito em suas versões originais? Ou vale repetir mais do mesmo apenas para atualizar um filme no aspecto visual, adicionando acabamento condizente com as mais recentes tecnologias criadas por magos dos efeitos especiais? Esse é o caso da refilmagem feita por Kimberly Pierce para o clássico do terror levado às telas em 1976 por Brian de Palma.

A primeira produção, em sua forma e essência, é uma obra redonda, repleta de méritos próprios, além de o fato de ter revelado ao mundo dois novos autores: o escritor de terror Stephen King, um habilidoso artífice da arte do terror, cujo “Carrie”, seu primeiro livro, havia sido escrito somente dois anos antes de chegar às salas de cinema, e o cineasta Brian de Palma, um minucioso mestre do suspense. Embora, na época, este houvesse sido incensado pela crítica especializada ao patamar de “novo Hitchcock” – um exagero midiático, já que o velho baluarte da sétima arte é notavelmente único –, existia uma lacuna em Hollywood. Afinal, em meados dos anos setenta, Alfred Hitchcock já estava em final de carreira, tendo filmado apenas dois longa-metragens nesta década, o último no mesmo ano do “Carrie” – “Trama Macabra” (Family Plot, Universal) –, antes de falecer em 1980. Além disso, o filme de Brian de Palma ainda reflete a essência do período em que foi realizado, servindo também para lançar uma penca de novos rostinhos, entre eles, John Travolta, Amy Irving, Nancy Allen e a estupenda protagonista, Sissi Spacek.

E é justamente aí que começa a diferença entre a película de Palma e a que está em cartaz nos cinemas. A estranheza de Sissi Spacek como a tímida adolescente Carrie, que fica horrorizada ao menstruar pela primeira vez e, por isso, sofre bulying das colegas, tendo sido criada por uma mãe enlouquecida que se refugia na religião para se esconder da vida, está completamente inserida na inadequação de se adaptar à nova realidade de costumes que a virada das décadas de 1960/1970 conferiu à humanidade. Seus incontroláveis poderes telecinéticos, com capacidade para levitar objetos, explodir lâmpadas ou varejar colegas de turma metros à distância, são mera metáfora para o horror de deixar de ser criança e virar mulher, sem que se tenha pleno domínio das mudanças que ocorrem dentro do corpo e da mente. E tudo respirando perfeitamente com os novos tempos, pós-revolução sexual, onde se entregar ao amor – e ao sexo liberado – pode significar uma cilada, justo a diferença entre se manter digno ou dar um passo errado na vida. Somente este ponto de vista já contextualizava, naturalmente, a época em que o filme original foi feito, e atualizar o roteiro para os dias atuais pode ser forçar a barra.

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Foto: divulgação

Além disso, a estranhíssima beleza de Sissi Spacek, ruiva, com aquele olhar arregalado de noiva cadáver e magreza pálida que poderia fazê-la parecer figurante de filme de zumbi, aliada à aura de pureza que a atriz emanava ao interpretar alguém que foi educada em um mundo à parte, era o que tornava a história de terror verossímil. Afinal, a produção de 1976 encontra-se dentro dos cânones cinematográficos da época, em que o glamour idealizado na velha Hollywood precisava ser sepultado sob toneladas de realidade, sob o risco de, ao contrário, espantar a plateia das salas de cinema. Foi nessa época em que surgiram atores próximos aos anseios do público pela reprodução da vida real nas telas, gente “feia e comum” como Dustin Hoffman, Liza Minelli, Robert Duvall, Jack Nicholson, Al Pacino, Barbra Streissand e Meryl Streep, mas repleta de talento. Levaria ainda cerca de vinte e poucos anos para o cinema redescobrir a mitologia da beleza, e a história de uma mocinha esquisita, inadequada à década em que vive e que usa poderes paranormais como válvula de escape para a tensão sexual reprimida, interpretada por uma bela e bizarra atriz, soava perfeita para uma era em que filmes de fantasia pouco podiam interessar ao público em geral.

Chloë Grace Moretz, a nova Carrie, é competente, mas isso não é suficiente para salvar o filme. Com apenas 16 anos de carreira e nove filmes no currículo, é excelente intérprete e chama atenção desde que despontou em 2010, no papel de uma super heroína adolescente em “Kick Ass” (de Matthew Vaughn, Universal, 2010). Sua participação em “A Invenção de Hugo Cabret” (Hugo, de Martin Scorcese, Paramount, 2011) também é memorável, assim como a vampira secular e solitária, aprisionada em um corpo teen, na adaptação americana do filme de terror dinamarquês “Deixe-me entrar” (Let me in, de Matt Reeves, Universal, 2010). Entretanto, sua beleza está longe de ser pouco convencional, como tinha a Carrie original, e isso prejudica o contexto. Mesmo não sendo exatamente uma top model, Moretz é bonitinha demais para um papel onde a estranheza é bem mais do que um pré-requisito. Além disso, a forma como assume a raiva na famosa cena do baile de formatura, exalando controle sob aquilo que deveria ser incontrolável – suas capacidades mentais – é uma opção que funciona na visão da diretora, mas que perde quando comparada à concepção de Brian de Palma na primeira versão. Afinal, ninguém tem poder algum sobre a menstruação, que vai e vem, ou mesmo sobre o desejo sexual, assim como a explosão paranormal. E isso é muito mais interessante que a escolha feita por Kimberly Pierce de transformar o descontrole irracional em vingança.

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Fotos: divulgação

Julianne Moore está incrivelmente boa como a insana mãe da teenager telecinética, mas a novidade é a adição de delicada fraqueza ao personagem. Um bom caminho, embora a frieza bruta utilizada por Piper Laurie na outra versão também seja arrebatadora. É nisso, aliás, em uma ótima composição de mãe louca fundamentalista religiosa, que as duas produções se aproximam e acertam.

Assim como, à primeira vista, também foi acertada a decisão da diretora de não reproduzir ipsis litteris a cena do baile, o ponto alto do filme de 1976. Afinal, sua cena-clímax, o trote que a adolescente sofre, ganhando uma ducha de sangue no cocuruto ao subir no palco para receber um prêmio, virou clássica e é o momento mais esperado do suspense. Poucas imagens no cinema traduzem de maneira tão crua como os adolescentes podem ser cruéis uns com os outros, quando despidos de super ego.  Portanto, o grande lance desta versão poderia ser não se deter tanto nesta parte do roteiro para se concentrar em seguida, quando, coberta por litros de sangue cenográfico, feito com glucose de milho, a paranormal eletrocuta todos e incendeia o ginásio, usando a parafernália de efeitos digitais de ponta.

Entretanto, as comparações são inevitáveis e, sem dúvida, o roteiro esquemático aprovado por Kimberly Pierce não ajuda, intensificando a comparação com o brilho de Brian de Palma. Este brindou a cinematografia mundial com uma das sequências mais magníficas do suspense mundial, quando, em cerca de sete minutos, o público vê toda a preparação da troça, frame by frame, sem que a mocinha, maravilhada como o que acontece à sua volta, se dê conta de que será estrela de uma blague macabra. Para piorar a coisa, a esquemática trilha sonora de Marco Beltrami nem de perto é capaz de sintetizar a angústia dessa cena, como ocorre com a composta por Pino Donaggio em 1976. E a diferença entre a música de cada filme resume bem o que falta agora, na produção de 2013: surpresa.