*Por Fabiane Pereira
Ela é carioca da Tijuca, escritora, atriz, cantora, compositora de uma das bandas mais importantes da nova geração musical contemporânea do Rio de Janeiro, a Letuce, e feminista. “Não dá para uma mulher não ser feminista hoje em dia”, afirma. Letícia Novaes é expressiva, inteligente, boa amiga, esotérica e entusiasta do bom humor. Lançou ano passado seu primeiro livro, “Zaralha – Abri minha pasta” (Editora Guarda Chuva), e o terceiro disco de sua banda, “Estilhaça” (independente). Ambos super elogiados pelo público e pela crítica. Este ano, Letícia estreou o projeto “Metrônomo”, idealizado por mim, que consiste em um minilivro de contos reunindo pessoas de segmentos artísticos diferentes.
Hoje, faz um ano que Letícia lançou seu Zaralha e, para celebrar, ela sobe ao palco do Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura que fica na rua Senador Dantas, no Centro da cidade, às 19h, para cantar e declamar seus delírios musicais e poéticos. No repertório, uma ou duas canções da Letuce, músicas inéditas, anciãs nunca lançadas e algumas prévias de sua carreira solo. Aliás, ela nos conta em primeiríssima mão que seu disco solo será produzido pela Mahmundi – pensem no acontecimento!!
Letícia também vai, claro, ler trechos do próprio livro que reúne poemas que atravessaram sua vida intrinsecamente. Zaralha reúne um conjunto riquíssimo da sua memória afetiva e de materiais de sua infância como fotografias fofas – esta que ilustra esta matéria – e outras hilárias do álbum de família. Se você foi criança nos anos 80, vai se identificar de cara.
Aqui, segui o conceito do livro e pedi à Letícia para abrir seu coração. Tem maternidade, feminismo, álcool, loucuras e novidades. Aliás, tem muito mais porque a Letícia é daquele tipo de gente que transborda.
Fabiane Pereira: Num dos primeiros versos do livro, você afirma que “chega uma hora em que o útero fala”. A maternidade faz parte dos seus planos? Seu útero já está cochichando com você sobre isso?
Letícia Novaes: Oscilo bastante entre querer ser mãe e não querer. A chegada dos meus três sobrinhos me acalmou um pouco. Mas sou uma pessoa maternal, com amigos, amores, desconhecidos. Quando o mundo se apresenta terrível, penso em não ter, e logo depois algo de mágico acontece e eu penso “Por que não?”.
FP: Li, recentemente, uma frase que adotei. “O mundo está muito louco e eu preciso manter a sobriedade”. Em Zaralha, você brinca com as respostas/perguntas que damos/fazemos quando sóbrios e quando altos. Estar “alta” faz você baixar a guarda significativamente?
LN: Eu adoro ficar louca, seja de gargalhada ou de álcool. Ou de paixão, ou de mar. Tem coisas que me desequilibram e me deixam perto da loucura, e é uma delícia, afinal sou muito controladora. Ainda bem que sou uma controladora especulativa. Estar alta nos ajuda a sobreviver, entendo. Só delirando a gente sobrevive nesse mundo. Mas gosto da sobriedade que adquirimos dentro da loucura, essa me interessa mais. Aquele momento bem específico de alucinação que você para e reflete, é curioso.
FP: Você revela tanto nas suas letras quanto em seus versos muita intimidade (não confundir com exposição). Quem acompanha sua carreira percebe facilmente isso. Além disso, fala de assuntos “incômodos” pra muita gente. O que inspira a sua produção artística? E de que maneira a sua arte te inspira no dia-a-dia?
LN: Olha, outro dia pensei como eu gostaria de estudar biologia marinha ou ser oceanógrafa, mas lembrei da minha dificuldade no colégio, minha falta de concentração com professores mumificados. Demorei muito tempo pra assumir que sei fazer uma coisa, que sou “boa” numa coisa. Eu queria ser uma boa bióloga, sabe? Mas estou envelhecendo e ficando mais calma com isso, e posso assumir que eu trabalho com intimidade. E sou espontânea no fluxo. Deixo fluir. Calhou da música ser uma paixão e juntei com a oura paixão, a escrita. Fico feliz quando a troca ocorre e algo que fiz no silêncio do meu quarto arrebata uma pessoa sei lá onde, vivendo sei lá qual luta. Porque eu também vivo sei lá onde, tenho minhas lutas, e ouço alguns artistas que me ajudam e me inspiram muito. Ciclo sem fim, é lindo isso.
FP: Muito antes de toda esta movimentação feminista tomar as redes sociais, você já propunha o diálogo sobre os direitos das mulheres através de seu blog. Hoje em dia, dá para uma mulher não ser feminista? Por quê?
LN: Não dá para uma mulher não ser feminista hoje em dia. Acabei de ler um comentário terrível sobre o caso da Luiza Brunet, que foi agredida pelo namorado. Uma moça dizia que a história estava mal contada, sondava o que a Luiz Brunet poderia ter falado antes da agressão. Nossa, isso me choca profundamente. Claro que ainda tenho resíduos de machismo, sou cria dos anos 80, meu pai não trocou fraldas dos três filhos e, na época, isso era o “certo”, enfim. Hoje em dia tento rever meus erros por culpa do patriarcado, e tento dialogar com todos que convivem comigo, meus dois irmãos, meus primos, meu pai, sobre o feminismo. É muito dolorido ainda, estamos todxs aprendendo! Mil histórias voltam na sua mente que você encobertou apenas porque parecia o normal na época. Às vezes me sinto como aquela mulher do cartaz “I can’t believe I still have to protest to this shit” (É inacreditável que eu ainda tenha que protestar por essa merda). É inacreditável mesmo, alguns avanços ocorreram, mas são tantas notícias macabras de feminicídio, que é um eterno ande duas casas, volte duas casas. Complicado.
FP: Em que momento da sua vida você percebeu que podia viver da sua arte?
LN: Esse momento ocorre todo dia, todo dia preciso pensar e repensar se posso viver da minha arte, digo monetariamente. Eu sempre vou viver da/com minha arte, seja embaixo do viaduto ou passando em todos os editais do mundo. Acho que, desde criança, percebi que as respostas clássicas de “ser médico, advogada” não me animavam tanto. Eu ainda não sabia o que eu queria ser, não tenho artistas na família, não sabia que isso era profissão, então foi bem complicado, mas aos poucos fui vendo que é um caminho sem volta. E que bom também.
FP: Como o teatro, a música e os versos convivem dentro da Letícia? Um destes segmentos artísticos tem um peso maior do que outro? Ou varia de acordo com o momento?
LN: Me formei em teatro e fui muito feliz, mas só trabalhei em pouquíssimas peças, engraçado. A Barbara Heliodora até me elogiou uma vez que substituí o Paulo Gustavo numa peça que ele e o Fabio Porchat fizeram no Teatro Ziembinski (risos)! Mas a música me sequestrou de maneira muito forte e livre e cheia de possibilidades. Sou extremamente viva cantando, nem sempre feliz, às vezes dói pra dedéu, mas me sacode muito e eu amo. Talvez eu faça uma peça futuramente, mas eu sou tartaruga com minhas ideias, demoro anos pra mirabolar, sou a cabra subindo a montanha, né?
FP: O que mudou na Letícia que descobriu que podia viver de arte pra Letícia, hoje, artista reconhecida e estabelecida nesta nova cena musical contemporânea?
LN: O que mudou é que recebo muitos emails, cartinhas, mensagens, comentários de pessoas muito curiosas com minha cabeça. Fico feliz de perceber que são seres esquisitos como eu, diferentes, conectados com algo maior, livres. Eu iria odiar ter fãs preconceituosos, e fico muito feliz quando vejo que as pessoas que compram minha arte são pessoas de luta, maravilhosas, engajadas, também artistas. Essa troca me alimenta muito. Muitos viram queridos e queridas da minha vida mesmo.
FP: “Amor Passa. Ultra Passa.”
O que te faz transbordar?
LN: O mar. Mergulhar. Nadar. Amar me faz transbordar.
FP: Como os astros te ajudam a elucidar as questões da vida?
LN: Não só os astros, mas o tarô, o reike, a umbanda, o alinhamento energético, magnified healing, (risos) eu sou uma esotérica incorrigível, e tudo bem. Minha mãe me criou assim, então não consigo me imaginar de outra maneira. Mas também fiz análise, beijo pra Freud e Jung. Cada um tem seu caminho e sua trajetória pra se elucidar. Minha escolha é mística, por confirmações que tive.
FP: Se não fosse capricórnio, qual signo gostaria de ter e por quê? (não precisa dizer áries para puxar meu saco. hahaha)
LN: Menina, jamais seria áries (risos)! Admiro, mas acho muito foguinho. Vou polemizar, mas acho que eu queria ser escorpiana, já que o signo que mais falam mal. Só pra ver qual é. Eu sou uma pessoa bem medrosa, mas sempre enfrento meu medo. Morro de medo de altura e pulei do bung jump mais alto da América Latina. Tem medo de escorpião? Eu seria.
FP: “Palmas pra quem não se separou”.
Quais as dificuldade que você vê nos relacionamentos modernos (sejam eles afetivos amor/amizade/profissionais)?
LN: Vivemos uma era da cagação de regra, né? Onde é mais fácil a pessoa te engavetar e dizer que você está sendo moralista diante de uma situação e tudo que você está é triste. Acho muito fácil mandar alguém “se fuder”. Difícil mesmo é cutucar e dizer “Oi, eu estou triste com você”. Todo mundo com os ânimos quentes, fica complicado mostrar o lado mais íntimo e sensível.
FP: Quais são os planos da Letícia pro 2º semestre de 2016 agora que Marte saiu da retrogradação?
LN: Muitos, quero fazer meu disco solo, produzido pela Mahmundi. Estamos animadas com a parceria feminina e astral. Ela é uma figura, amo muito. Continuo escrevendo que nem doida, logo logo pintam coisas por aí.
FP: Hoje é dia de show, é dia de declamação de versos. O que o público vai ver hoje no Teatro Eva Hertz?
LN: Umas músicas que fiz há anos, quando era ainda uma baby, quando ainda estava aprendendo o que era nascer e me lançar no mundo. Músicas que fiz recentemente já bem safa na vida. Vou ler meus poemas favoritos atuais e alguns favoritos da vida. Da Sylvia Plath, da Wislawa Szymborska, da Maria Rezende, Bruna Beber, mulheres que amo e admiro.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.
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